Considerando que a Terra e a Humanidade fazem parte de um vasto universo em evolução e têm o mesmo destino, ameaçado de destruição pela irresponsabilidade e falta de cuidado dos seres humanos, e que a Terra forma com a Humanidade uma única entidade, complexa e sagrada, como fica claro quando se a vê do espaço exterior, e que, além disso, a Terra é viva e se comporta como um único sistema autorregulador formado por componentes físicos, químicos, biológicos e humanos que a tornam propícia para a produção e reprodução da vida e que, por isto, ela é nossa Grande Mãe e nosso Lar Comum.
Levando em conta que a Mãe Terra é composta pelo conjunto dos ecossistemas nos quais ela gerou uma multiplicidade magnífica de formas de vida, todas interdependentes e complementares, formando a grande comunidade da vida, e que existe um laço de parentesco entre todos os seres vivos porque todos são portadores do mesmo código genético de base que fundamenta a unidade sagrada da vida em suas múltiplas formas e que, portanto, a Humanidade faz parte da comunidade da vida e do momento de consciência e inteligência da própria Terra, fazendo com que o ser humano, homem e mulher, seja a própria Terra que fala, pensa, sente, ama, cuida e venera.
Considerando que todos os seres humanos, com suas culturas, línguas, tradições, religiões, artes e visões de mundo, constituem a única família de irmãos e irmãs com dignidade igual e direitos iguais e que a Mãe Terra providenciou tudo de que necessitamos para viver e que a vida natural e humana depende de uma biosfera saudável, com todos os ecossistemas sustentáveis, com água, matas, animais e incontáveis micro-organismos preservados, e, além disso, que o crescente aquecimento global pode colocar em risco a vitalidade e integridade do sistema Terra e que podem ocorrer graves devastações, afetando milhões e milhões de pessoas, e eventualmente inviabilizar a sobrevivência de toda a espécie humana.
Recordando que é preciso renovar e articular organicamente o contrato natural com o contrato social, que ganhou um papel de exclusividade e propiciou o antropocentrismo e instaurou estratégias de apropriação e dominação da natureza e da Mãe Terra, já que o modo de produção vigente nos últimos séculos e atualmente globalizado não conseguiu satisfazer as demandas vitais dos povos, gerando, ao contrário, um fosso profundo entre ricos e pobres.
Considerando, finalmente, que a consciência da gravidade da situação crítica da Terra e da Humanidade torna imprescindíveis mudanças nas mentes e nos corações, como o sublinha com ênfase a Carta da Terra, e que se forje uma coalizão de forças em torno de valores comuns e princípios inspiradores que sirvam de fundamento ético e estímulo para práticas que busquem um modo sustentável de viver. As pessoas, as instituições, a iniciativa da Carta da Terra, os líderes políticos, as ONGs, as religiões e igrejas que subscrevem esta Declaração veem a urgência de que se proclame a presente Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade, cujos ideais e critérios devem orientar os povos, as nações e todos os cidadãos em suas práticas coletivas, comunitárias e pessoais e nos processos educacionais para que o Bem Comum seja progressivamente reconhecido, respeitado, observado, assumido e promovido universalmente com vistas ao bem viver de cada um e de todos os habitantes deste pequeno planeta azul-branco, nosso Lar Comum.
Artigo 1
O Bem Comum supremo e universal, condição para todos os demais bens, é a própria Terra, que, por ser nossa Grande Mãe, deve ser amada, cuidada, regenerada e venerada como nossas mães.
- O Bem Comum da Terra e da Humanidade exige que entendamos a Terra como viva e sujeito de dignidade. Ela não pode ser apropriada de forma individual por ninguém, nem ser transformada em mercadoria, nem sofrer agressão sistemática por parte de nenhum modo de produção. Pertence comunitariamente a todos os que a habitam, inclusive àqueles que ainda não nasceram, e ao conjunto dos ecossistemas.
- O Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade exige que se proteja e restaure a integridade dos ecossistemas, tendo especial preocupação com a diversidade biológica e com todos os processos naturais que sustentam a vida.
- O Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade é fortalecido quando todos os seres são vistos como interligados e com valor intrínseco, independentemente de seu uso humano.
Artigo 2
Para assegurar o Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade é necessário reduzir, reutilizar e reciclar materiais usados na produção e no consumo, garantir que os resíduos possam ser assimilados pelos sistemas ecológicos e buscar o bem viver a partir da sustentabilidade dos ecossistemas, em cooperação com os outros e em harmonia com os ritmos da natureza.
- O Bem Comum da Terra e da Humanidade resulta da utilização sustentável dos bens renováveis como a água, os solos, os produtos florestais e a vida marinha de forma que eles possam ser repostos e garantidos para as gerações atuais e futuras.
- O uso dos bens não renováveis, como minerais e combustíveis fósseis, deve ser feito de tal forma que reduza sua extinção e não prejudique gravemente o Bem Comum da Terra e da Humanidade.
Artigo 3
Adotar padrões de produção e consumo que garantam a vitalidade e integridade da Mãe Terra, a equidade social na Humanidade, o consumo responsável e solidário e o bem viver comunitário.
- O Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade exige a utilização sustentável das energias disponíveis, privilegiando as matrizes renováveis e outras fontes alternativas, como a energia do sol, do vento, das marés e a agroenergia.
- O Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade é potenciado quando se diminui ao máximo a poluição de qualquer parte do ambiente de forma a evitar os efeitos perversos do aquecimento global e não permitir o aumento de substâncias radioativas ou tóxicas e de outras substâncias químicas perigosas.
- O Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade não é compatível com a existência de armas nucleares, biológicas e químicas e outras armas de destruição em massa, que devem ser totalmente eliminadas.
Artigo 4
A biosfera é um Bem Comum da Terra e da Humanidade e é patrimônio compartilhado por todas as formas de vida, da qual os seres humanos são tutores.
Artigo 5
Pertencem ao Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade os recursos naturais, como o ar, os solos, a fertilidade, a flora, a fauna, os genes, os micro-organismos e as amostras representativas dos ecossistemas naturais e o espaço exterior.
- A água pertence ao Bem Comum da Terra e da Humanidade porque é um bem natural, comum, vital e insubstituível para todos os seres vivos, especialmente para os humanos, que têm direito ao acesso a ela, independentemente dos custos de sua captação, reserva, purificação e distribuição, que serão assumidos pelo poder público e pela sociedade.
- Os oceanos são um Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade porque constituem os grandes repositórios da vida, os reguladores dos climas e da base física e química da Terra.
- As matas pertencem ao Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade, contêm a maior biodiversidade do planeta, a umidade necessária para o regime de chuvas e são os grandes sequestradores de dióxido de carbono.
- Os climas pertencem ao Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade porque são a condição essencial para a manutenção da vida, e as mudanças climáticas devem ser tratadas globalmente e com uma responsabilidade compartilhada.
Artigo 6
Pertencem ao Bem Comum da Terra e da Humanidade os alimentos em sua diversidade e os recursos genéticos/filogenéticos necessários para sua produção, sobre os quais se proíbe todo tipo de especulação mercantil.
Artigo 7
São Bens Públicos da Humanidade as energias necessárias para a vida, a saúde e a educação, os meios de comunicação, a internet, os correios e os transportes coletivos. Os medicamentos produzidos por laboratórios privados passam a pertencer ao Bem Comum da Humanidade depois de cinco anos e, em situações de emergência, podem ser tornados públicos imediatamente.
Artigo 8
As atividades petrolíferas e minerais e os agrocarburantes devem ser submetidos a um controle estatal e social devido aos efeitos danosos que podem ter sobre o Bem Comum da Humanidade e da Mãe Terra.
Artigo 9
Junto com a Terra e a biosfera, a Humanidade como um todo é o mais elevado Bem Comum da Terra e da Humanidade. Ela não é a soma dos indivíduos da espécie humana. Pelo fato de esta espécie ser essencialmente social, a Humanidade surge como o conjunto de relações de todo tipo estabelecidas entre as pessoas, instituições, etnias e culturas. Constitui um erro e uma ilusão repartir a humanidade em entidades diferentes por natureza ou por categorias heterogêneas, porque todos temos uma mesma origem comum. Todos somos africanos, coproprietários da Terra e corresponsáveis por seu cuidado e sua gestão.
- Pelo fato de ser consciente e corresponsável, a Humanidade histórica pode se mostrar sapiente e demente, egoísta e altruísta. Ela pode usar os saberes técnicos e científicos para beneficiar a vida de todos e da Terra assim como pode criar engenhos de morte que podem ameaçá-la até destruí-la. É capaz de amar até dar a vida assim como de odiar até tirar a vida. Por isso se impõe a consciência de uma ética humanitária que ama e protege mais a vida em todas as suas formas do que o poder e a vantagem pessoal ou coletiva.
- É próprio da humanidade se dar um objetivo comum e se imaginar um futuro de esperança, criando para isso as condições de alcançá-lo a curto, médio e longo prazo. Com isto, ela cria uma comunidade de destino, copilotando a biosfera na perspectiva da perpetuidade da espécie humana. III. Cabe à Humanidade tornar-se responsável por seu crescimento demográfico dentro dos limites físicos e geográficos de um planeta finito, sabendo, com ética e sabedoria, compatibilizar o direito das pessoas e das famílias com o interesse coletivo da humanidade.
Artigo 10
O grande Bem Comum da Terra e da Humanidade são os seres humanos, homens e mulheres, portadores de dignidade, consciência, inteligência, amor, solidariedade e responsabilidade.
- É preciso afirmar a dignidade inerente a todos os seres humanos e seu potencial intelectual, artístico, ético e espiritual.
- A missão dos seres humanos é cuidar e proteger a Terra e a Humanidade como heranças recebidas do universo.
- As comunidades em todos os níveis têm a obrigação de garantir a realização dos direitos e das liberdades fundamentais, criando as condições para que cada pessoa realizar seu pleno potencial e contribuir para o Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade.
Artigo 11
Pertencem ao Bem Comum da Terra e da Humanidade todos os saberes, artes e técnicas acumulados ao longo da história.
- O Bem Comum da Terra e da Humanidade exige o reconhecimento e a preservação dos saberes tradicionais e da sabedoria espiritual de todas as culturas que contribuem para cuidar da Terra, desenvolver o potencial da Humanidade e favorecer o Bem Comum.
- O Bem Comum da Humanidade exige que se incrementem com recursos financeiros, técnicos, sociais e intelectuais os povos pobres e vulneráveis para que alcancem um modo de viver sustentável e colaborem com o bem comum.
- O Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade exige a erradicação da pobreza como um imperativos humanitário, ético, social, ambiental e espiritual.
- A justiça social e a ecológica não podem ser dissociadas porque ambas servem ao Bem Comum da Terra e da Humanidade.
- Pertencem ao Bem Comum da Terra e da Humanidade a igualdade de gênero, a superação de todo tipo de discriminação, a proteção das crianças contra toda violência e a segurança social de todas as pessoas que não podem se manter por conta própria.
Artigo 12
Pertencem ao Bem Comum da Terra e da Humanidade todas as formas de governo que respeitam os direitos de cada ser humano e da Mãe Terra e propiciam a participação ativa e inclusiva dos cidadãos na tomada de decisões, favorecem o acesso irrestrito à justiça e cuidam do entorno ecológico.
Artigo 13
O Bem Comum da Terra e da Humanidade exige que se protejam as reservas naturais, incluindo terras selvagens e áreas marinhas, os sistemas de sustento da vida na Terra, as sementes, a biodiversidade e que se resgatem as espécies ameaçadas e os ecossistemas devastados.
- Controlar a introdução de espécies exógenas e submeter rigorosamente ao princípio de prevenção todos os organismos geneticamente modificados para que não causem danos às espécies nativas e à saúde da Mãe Terra e da Humanidade.
- Garantir que os conhecimentos dos vários campos do saber que são de importância vital para o Bem Comum da Terra e da Humanidade sejam considerados de domínio público.
- Proíbe-se patentear recursos genéticos fundamentais para a alimentação e a agricultura, e as descobertas técnicas patenteadas devem guardar sempre sua destinação social.
Artigo 14
Pertencem ao Bem Comum da Humanidade e da Mãe Terra a multiplicidade das culturas e línguas, os diferentes povos, os monumentos, as artes, a música, as ciências, as técnicas, as filosofias, a sabedoria popular, as tradições éticas, os caminhos espirituais e as religiões.
Artigo 15
Pertence ao Bem Comum da Terra viva e da Humanidade a hospitalidade pela qual acolhemos e somos acolhidos mutuamente, como habitantes do mesmo Lar Comum, a Terra.
Artigo 16
Pertencem ao Bem Comum da Humanidade e da Mãe Terra a sociabilidade e a convivência pacífica com os todos os seres humanos e com os seres da natureza porque somos todos filhos e filhas da Mãe Terra e somos corresponsáveis pelo mesmo destino comum.
Artigo 17
Pertence ao Bem Comum da Humanidade a tolerância que acolhe as diferenças como expressões da riqueza da única natureza humana e não permite que tais diferenças sejam consideradas desigualdades.
Artigo 18
Pertence ao Bem Comum da Terra e da Humanidade a capacidade de reconciliação por parte de pessoas e povos frente a violências e danos sofridos no contexto da reconstrução da verdade e da justiça, não permitindo que a vingança e o ódio tenham a última palavra.
Artigo 19
Pertence ao Bem Comum da Humanidade a comensalidade que expressa o sonho ancestral de todos os povos de sentar-se juntos, como irmãos e irmãs da mesma família, ao redor da mesa, comendo e bebendo alegremente dos frutos da generosidade da Mãe Terra.
Artigo 20
Pertence ao Bem Comum da Humanidade a compaixão com todos os que sofrem na natureza e na sociedade, aliviando seus sofrimentos e impedindo todo tipo de crueldade contra os animais.
Artigo 21
Pertencem ao Bem Comum da Humanidade os princípios éticos de respeito por todo ser, do cuidado da natureza e da responsabilidade universal pela preservação da biodiversidade e pela continuidade do projeto planetário humano e os princípios de cooperação e solidariedade de todos com todos partindo dos mais necessitados, para que todos sejam incluídos na mesma Casa Comum.
Artigo 22
Pertence ao Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade a busca permanente da paz que resulta da relação correta consigo mesmo, de todos com todos, com a natureza, com a vida, com a sociedade nacional e internacional e com o grande Todo do qual fazemos parte.
Artigo 23
Pertence ao Bem Comum da Humanidade e da Mãe Terra a convicção de que uma Energia amorosa subjaz a todo o universo, sustenta cada um dos seres e pode ser invocada, acolhida e venerada.
Artigo 24
Todos estes ideais e critérios do Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade prolongam e reforçam os princípios e valores da Carta da Terra e os direitos humanos contidos na Declaração dos Direitos do Homem proclamada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia da ONU, gerando a esperança de uma biocivilização em harmonia consigo mesma, cheia de cuidado para com a Mãe Terra, fundamentada no espírito de cooperação, irmandade universal e amor incondicional.
Leonardo Boff, formado na tradição franciscana, teólogo, criador, juntamente com Gustavo Gutierrez e outros, da Teologia da Libertação, dedica-se a uma espiritualidade de mudança para o paradigma ecológico, razão pela qual recebeu o Nobel alternativo em 2001. Integra a Comissão da “Carta da Terra”. Juntamente com Sergio Torres, é um dos inspiradores do Fórum Mundial de Teologia e Libertação.
Miguel d’Escoto Brockmann, nicaragüense nascido em Los Angeles, membro da Congregação de Maryknoll, engajou-se na revolução sandinista da Nicarágua, tornando-se diplomata e ministro de governo. Foi eleito presidente da Assembléia das Nações Unidas para o período de setembro 2008 a setembro 2009.